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Foto do escritorJuliano Poeta

Vou quebrar tua cara!

Estou de mudança para uma casinha nova. Sabe como é, entra na OLX, fica catando e marca 8 visitas em um dia. E numa dessas casas em que eu e Fran fomos visitar, chegamos em um condomínio onde um homem sorridente nos abriu o portão. Ele nos mostrou a casa com um pouco de pressa, mas pode ter sido eu que estava muito calmo. Tanto pelo whatsapp antes da visita quanto ao vivo ele parecia ser um cara legal, eu até ri de um piada dele.


Durante a visita, porém, comecei a ficar desconfortável quando percebi que, toda vez que a Fran se virava para ver algo, ele dava aquela “olhadinha”, baixando os olhos em um movimento que conheço tão bem. Faz alguns anos que treino olhar as pessoas nos olhos, e hoje já percebo um mínimo movimento no olhar do outro. Nesse caso foi tão grosseiro que pude apenas sentir.


Depois da terceira ou quarta vez que o vi fazer isso eu falei no ouvido da Fran, “Que saco esse cara, toda vez que tu se vira ele olha pra tua bunda”. Nisso ela ficou mais atenta e, ao perguntar algo para ele olhando nos olhos, viu que mesmo de frente ele não se aguentou e baixou brevemente os olhos para encarar seus peitos. Obviamente ela percebeu e já foi se retirando em direção ao portão de saída. Eu fui também, e com um sorriso torto me despedi. Ele não entendeu nada.


Já de noite, na frente de casa, paramos para mandar mensagens às donas das casas que mais gostamos. E pensei: “vou mandar uma mensagem para aquele cara. Eu trabalho com homens, o assédio acontece toda hora, na minha frente, não vou deixar passar”. Me preparei e comecei, com a voz trêmula, a mandar um áudio. Meu coração disparou e eu cancelei o envio.


Fechei os olhos, respirei fundo, firmei no meu propósito e deslizei de novo o botão do áudio. Falei, com todo cuidado, que tinha me sentido desconfortável quando ele olhava para o corpo da Fran, que eu também já fiz muito isso e que precisamos parar. Fiz um convite para a reflexão. Sem agressividade, sem xingamentos. Enviei. Arranquei o carro e fui até a casa do Eduardo para conversarmos e trabalharmos no projeto da Jornada Solar.


Quando estacionei na frente do portão vi um áudio em resposta.

Dei play.

“Cara, vai te tratar! Tu tá maluco cara, você só pode ser doente mental!”.

Respirei fundo.

Escrevi: “Beleza, fica o convite”.

Novo áudio.

(aos gritos) “Beleza é o caralho! Tu fala isso na minha frente e EU QUEBRO TUA CARA!!”


Meu coração disparou. Tentei controlar a respiração enquanto o portão se abria e os cachorros começavam a latir. Fui caminhando e o medo começou a se espalhar pelo meu corpo. As mãos suavam, a cabeça latejava. Contei a história para o Edu, conversamos um pouco sobre. Decidi bloquear o contato no whatsapp. Continuamos conversando sobre outros assuntos, mas isso não me saía da cabeça. Pensei em mandar aquele meu texto sobre “Como aprendi a ser homem”, talvez ele se identificasse. Pensei que não deveria sentir medo dele.


Desbloqueei o contato.


Voltei para a casa e contei para a Fran, que tinha saído antes de eu mandar o áudio no carro. Ela me escutou e aconselhou. Percebi que eu estaria me expondo a um cara que não quer ser ajudado. Bloqueei o contato de novo e arquivei a conversa. Apaguei o número dele dos meus contatos.

tirinha por por @jhonlrocha - @quadrinhosdelavita


Fui para o quintal e sentei num banco de madeira com os pés na terra. Chamei meus anjos e minhas guias, pedi ajuda. Chorei. Senti toda aquela energia densa indo para o chão e voltando na forma de uma rosa amarela. Visualizei uma redoma de vidro em volta do meu corpo, mais forte que aço inox. Me senti bem.


Acordei no outro dia com uma sensação de leveza, e logo recebi a mensagem de um amigo. Ele me contou o quanto estava desesperançoso com a sociedade, principalmente com os homens. Disse que não íamos mudar tão cedo, que as coisas demoram. Contei minha breve história para ele. “Leo, eu quero que meus bisnetos não tenham que lidar com esses problemas que a gente lida, de violência, de assédio. Meus bisavós passaram fome, mas eu não. Meus avós queriam conforto, eu já tenho. Meu pai e mãe queriam falar inglês, eu já sei. Toda mudança é lenta, gradual e constante. Mas, se a gente não fizer nada, não vai ter mudança. Alguém tem que olhar para isso, e esse alguém somos nós”.


Não basta não assediar, precisamos agir contra o assédio. E você, já vivenciou alguma situação parecida? Como você agiu, como se sentiu?


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