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Ele — Capítulo 1

A situação era tipo assim: um ex-empresário, formado em Administração, 1º lugar no vestibular, que estudou a vida inteira em colégio particular, e quando bateu o retorno de Saturno resolveu largar tudo pra viver de arte. Branco bronzeado e tatuado, 1,80 depois que foi em osteopata, cabelos cacheados em crescimento espiralado. Hétero, morou a vida inteira em apartamento e adora um baseado - não podia ser + clássico: o estereótipo do brasileiro privilegiado.


Carlos nasceu em Porto Alegre, o 2º filho de pai e mãe vindos do interior. Funcionários públicos, trabalharam inúmeras horas extras pros filhos terem tudo que faltou pra eles. O pai largava e pegava na escola; ia no super, escolhia, pagava, embalava, carregava, desembalava, guardava, cozinhava, servia e lavava a louça - ele comia. A mãe mimava - levava no shopping comprar roupa nova pro Natal, fazia cafuné sábado de manhã e viam juntos Sex and the City na sala até ele dormir no seu colo. O irmão mais velho abria as portas - ensinou seus primeiros palavrões, o protegeu dos valentões na escola e também deu umas surras na luta pelo controle remoto da TV da sala.


Quando tinha 15 anos nosso hoje artista dizia que com 19 ia morar em Londres e ser barman, mas o que eu vi foi ele com 22 servindo Original e caipira de mel na Cidade Baixa, num tal Matita Perê.


Foi por aí que ele saiu de casa escondido.


Tinha tentado anos antes se mudar pra casa dos avós, sendo resgatado por mãe e pai 1 dia depois da fuga. Aí quando já ganhava seus $900 por mês juntando a grana dos dois trampos (estágio e garçom) foi que arranjou um ap com um brother por $600 por mês pra começar. Esperou seus coroas irem viajar pra Europa pra vazar no mesmo dia com mala e sem cuia.


Não passou muito, tipo 1 ano e pouco, e foi já na viagem de formatura, na volta da trilha da Pedra da Gávea que teve a ideia de sair da Babylonia, selva de pedra, e ir morar na praia - “a ilha me espera”. Pra fechar o ciclo terminou o relacionamento 1 dia antes do natal, e 31 de janeiro, no olho do verão, botou tudo no carro que ganhou do pai e arranjou um ap perto do trabalho, na zona universitária.


Já era formado, empresário e se achava esclarecido - dotado de um sentido na vida. Mas a ex-companheira tinha avisado - “tu vai largar tudo e ir morar no meio do mato”. E hoje, se não me engano, ele vai entregar o contrato da casa que alugou no fim de uma rua sem saída, com bastante espaço e árvores frutíferas. Ainda lançou nesse ano novo o segundo livro, mas anda se queixando de estar travado — quer escrever contos, algo + aprofundado.

A poesia tem seu valor, e agora quer fazer a viagem ser mais doida, ao centro do Ser. Então, sobre o que ele poderia escrever, se não sobre sua própria história, e a vida que acaso, destino e livre arbítrio o levaram a viver?

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